Mar 29, 2024

Impróprio à família não é desenho de beijo, mas autoridade promover ódio

 

Toda vez que uma autoridade aponta o dedo para grupos sociais minoritários e afirma que seu comportamento é inapropriado e inadequado, mesmo quando se trata da simples representação de um beijo entre duas pessoas do mesmo sexo, a mensagem transmitida é que a camada da população que sempre sofreu preconceito pode perder os poucos direitos que conquistou com base em suor, sangue e lágrimas. Pois o poder público apoia esse retrocesso.

Para cada político afirmando que beijo gay é uma conduta questionável e, portanto, deve ser censurada, existem milhares de pessoas dispostas a "censurar" aqueles que são chamados de "abominações". Na rua, na escola, no trabalho, nos estádios de futebol. Com xingamentos, socos e pontapés, tacos de baseball, cacos de garrafas, ácido, canivetes e pistolas.

Comportamentos como o do prefeito Marcelo Crivella, que ordenou a censura de um gibi que contém o tal beijo entre dois rapazes, e do desembargador Claudio de Mello Tavares, presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que afirmou ser inadequado uma publicação de super-heróis, para crianças e jovens, trazer um beijo gay sem estar lacrada e com aviso, empoderam indivíduos e grupos que não toleram a existência da população LGBTQ+ e estão à espreita.

Ambos tomaram decisões que mostram que o problema não é o beijo, mas ele não ser heterossexual. Ou seja, não é o ato em si, mas as pessoas envolvidas. Ignorando a Constituição, que aponta que todos são iguais perante a lei, querem provar que uma parte da população tem tratamento diferenciado por ser cidadã de segunda classe. Pior, ser humano de segunda classe. Crivella, que eu me lembre, não abriu uma cruzada contra Bolsonaro pela, hoje, icônica golden shower divulgada para milhões de seguidores no Carnaval.

Um beijo. Não foi uma cena de sexo grupal, envolvendo pandas, guaxinins e um eucalipto, enguias em preservativos, terminando num bukkake, tudo no pé da estátua do Cristo Redentor. Foi um mísero beijo.

Como já disse aqui um rosário de vezes, líderes políticos, magistrados, religiosos fundamentalistas, comunicadores, humoristas dizem que não incitam a violência. Não são suas mãos que seguram a arma, mas é a sobreposição de seus argumentos ao longo do tempo que distorce a visão de mundo das pessoas comuns e torna o ato de atacar banal. Suas ações e regras redefinem, lentamente, o que é ética e esteticamente aceitável, visão que depois será consumida e praticada por terceiros. Estes acreditarão estarem fazendo o certo, quase em uma missão civilizatória. Ou divina.

Isso ocorre não apenas contra a população LGBTQ+, mas também contra religiões de matriz africana, entre outros grupos vulneráveis.

O pior é saber que o prefeito faz todo esse fuzuê para ganhar atenção da população e da mídia diante de uma gestão mal avaliada e reforçar sua base de seguidores ultraconservadores. Já que não consegue melhorar a qualidade de vida de jovens dos bairros pobres da cidade, que continuam morrendo pelas mãos de traficantes, das milícias e da polícia, tornou-se fiscal de gibi.

Crivella vai deixar a administração municipal um dia. Mas o desserviço que faz ao tentar manter cidadãos de segunda classe vai ser sentido por muito tempo depois de sua saída do cargo.

Também já disse aqui que tenho a certeza de que se Jesus, o personagem histórico, vivesse hoje, defendendo a mesma ideia presente nas escrituras sagradas do cristianismo, mas atualizando-a para os novos tempos, seria humilhado, xingado, surrado, queimado, alfinetado e explodido. Seria chamado de defensor de "viado imprestável", "mendigo sujo" e "sem-teto vagabundo". Olhado como subversivo, acusado de "heterofóbico" e "cristofóbico". Batizado como agressor da família de bem e dos bons costumes. Por muito menos, o papa Francisco, que se preocupa com as minorias, já é chamado de comunista.

A passagem mais legal dos Evangelhos cai como uma luva, neste momento, sobre aqueles que pregam o ódio em nome de Deus: Lucas, capítulo 23, versículo 34: "Pai, perdoai. Eles não sabem o que fazem".

 

Leonardo Sakamoto - Colunista do Site Uol

 

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